A ARTE DE ENFRENTAR OS PRÓPRIOS FANTASMAS


Foto: J.CostaLima

Ir ao encontro de angústias e incertezas que nos apavoram pode ser a melhor forma de não paralizar e seguir em direção ao amuderecimento emocional




É absolutamente normal sentir medo. Ele faz parte de um sistema natural de defesa, que vem evoluindo conosco já faz alguns milhares de anos e surge nas situações mais diversas e imprevistas. É paralisante, irracional e incontrolável. Desperta reações subconscientes e nos remete ao ancestral selvagem que habita em nossa mente – e ainda move (ou faz estancar) nosso corpo.

Diferentemente do que acontecia com nossos “ancestrais selvagens” ou ocorre comoutros animais, no entanto, os motivos dos medos  que experimentamos raramente se materializam, permanecendo mais em nosso imaginário do que na vida real. Essa “expectativa” de uma ameaça que nunca se concretiza pode se tornar patológica, dando vazão a transtornos cognitivo-emocionais. Explico: imagine a “pane” que acontece quando um fabuloso sistema biológico preparado para reagir lutando até a morte ou fugindo até esgotar sua energia muscular é continuamente ativado, mas não chega a se tornar necessário de fato. É mais ou menos como se um piloto estivesse parado com seu carro no sinal vermelho, o sinal de vez em quando desse “alerta” amarelo, ele se preparasse para sair do lugar, começasse a acelerar, esquentasse o motor e... nada, o sinal voltasse a ficar vermelho novamente. Repetidas ativações do sistema de defesa (sinal amarelo), sem nunca requerer a resposta motora (sinal verde) e sempre retornando ao ponto de partida (sinal vermelho), com imobilidade e muita expectativa: assim é o ciclo deflagrado no organismo numa situação de estresse crônico em contexto urbano moderno.

Esses ciclos de carga emocional acontecem de forma bastante semelhante à situação do piloto numa largada descrita acima. As pupilas se dilatam, a atenção aumenta, os batimentos cardíacos se aceleram, o corpo mobiliza energia, os músculos ficam tensos – e tudo absolutamente em vão. A expectativa do medo provoca estresse e dá vazão a sintomas somáticos, incluindo, por exemplo, a hipertensão.

Neste momento você poderia se perguntar: “Mas temos um sistema de defesa em nosso cérebro que serve para nos deixar estressados e doentes?”. Na verdade, não é bem assim. O que ocorre é um processo que chamamos de má adaptação. O mundo está mudando rapidamente à nossa volta, a população cresce exponencialmente, tudo a uma velocidade de renovação tecnológica sem precedentes, e você, no fundo (e no cérebro), continua sendo um homem (ou mulher) das cavernas!

 Esse ancestral, que tinha o cérebro muito parecido com o seu, vivia em constante confronto com perigos reais e corria risco de vida em várias situações; se “desse bobeira”, era devorado por algum grande predador ou tomava um bocado de pancadas de um rival ou competidor. Nesse caso, toda essa resposta emocional, o coração batendo tão rápido que parece querer sair pela boca, a preparação para a fuga ou para o combate iminente, era puramente justificada! Assim, extravasando a energia mobilizada, o homem primitivo não sofria de úlcera nervosa...

Em resumo, é fundamental enfrentar nossos medos e aprender a lidar com nosso cérebro de homem das cavernas que vive na selva urbana. Nem toda fumaça indica incêndio, e precisamos ficar alertas para não sermos ludibriados pelos bugs de nosso sistema operacional que já vem desatualizado de fábrica. A reprogramação mental – e emocional – é possível e bem-vinda. Em tempos de crise e quebra de paradigmas como o que vivemos atualmente, com o planeta se tornando um grande formigueiro, a mudança de nossa mente e nossas atitudes se faz extremamente necessária, incluindo aí o enfrentamento de fantasmas, angústias e incertezas que todos temos, em alguma medida. E não podemos nos dar ao luxo de alimentá-los, pois o medo é paralisante e nos faz desperdiçar muita energia. Melhor enxergar essas emoções como um sinal que aponta em direção a fraquezas e proporciona oportunidades de amadurecimento. Afinal, “não há coragem sem medo” (em inglês, “There cannot be courage without fear”), frase atribuída ao piloto de Fórmula Indy e designer de automóveis Eddie Rickenbacker. Ás da aviação americana durante a Primeira Guerra Mundial, ele foi consultor militar, empreendedor e sobrevivente de desastre aéreo, encarou seus medos e não os deixou impedi-lo de realizar seus sonhos. 


A Nossa Vitória de cada Dia


“Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas, coisas e coisas por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois   isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: ‘tens medo’. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saberem como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amora nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo“ e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos se estivéssemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.”Clarice Lispector
                                                                                                                Foto: J.CostaLima

A Coragem do Desejo Feminino

Quando o capitão do Costa Concordia, Francesco Schettino, abandonou o navio, mesmo contra uma ordem direta, o mundo se revoltou indignado com a covardia moral, técnica e com a acomodação, que podem ter causado mais mortes, além das que procederam de sua provável imperícia. O fato se agrava porque contraria também o código de honra que esperamos dos homens do mar. Por outro lado, o comandante Falco, que ordenou, veementemente, o retorno de Schettino ao navio foi elevado à condição de herói nacional na Itália. Se olharmos uma segunda vez para o episódio algumas perguntas podem ser colocadas. Afinal, por que concluímos que a atitude de Falco contém a coragem e a retidão que faltaram a Schettino? Ele não agiu apenas de maneira apropriada, eficaz e de acordo com seu cargo. Havia algo mais na responsabilidade que acompanhava seus atos e palavras, algo de que estamos precisando urgentemente. 

Observemos como os sinais que tornam seu ato tão valoroso são também violações do código. Ele usa um palavrão (“Volte a bordo, cazzo”) quando se espera a devida sobriedade profissional, chora de raiva publicamente (ao saber do número de vítimas) – quando se espera que o código viril garanta contenção e serenidade. Falco usa linguagem irônica e pessoal (“Está escuro e você quer voltar para casa?”) quando o protocolo reza a habitual coação hierárquica administrada. Ele denuncia a mentira de Schettino (“Acabei caindo no bote”) onde outros teriam mantido cínico silêncio profissional. Ou seja: também viola códigos, mas no bom sentido, ao contrário do outro. O episódio nos faz perguntar de onde vem este tipo de coragem de que tanto precisamos. Há muito discurso sobre educação, consciência dos riscos, proteção ambiental e sustentabilidade. Mas será que de tanto nos preocuparmos com ameaças à segurança e à preservação da vida, cada vez mais complexa, não estamos esquecendo de perguntar como ensinamos alguém a se tornar corajoso? O problema é que as clássicas narrativas bélicas, os grandes romances em torno do crime, da honra e da aventura já não nos ajudam decisivamente a lidar com fenômenos como o dito naufrágio. São situações que dependem mais da capacidade de desobedecer do que da continência para agir em conformidade com aquilo que tem dominado nosso discurso moral cujos valores são sobrevivência, conforto e redução de riscos. Contudo, há ainda um grande discurso sobre a coragem do desejo, a coragem necessária para sermos consequentes e implicados com nossos sonhos e ideais, que não foi plenamente reconhecido. 

Uma pista disso está nos sinais menos evidentes da attitude indignada do comandante Falco. Não creio que ele tenha sido admirado apenas por sua capacidade de “fazer o que é certo”, mas porque o fez, apesar de toda a virilidade, nos termos do que poderíamos chamar de coragem do desejo feminino (ou o que o ocidente cristão androcêntrico se habituou a reconhecer nos personagens femininos de nossas grandes narrativas). Coragem que deve ser retida fora do eixo da força em oposição à fragilidade. Vamos reescrever a cena deste ponto de vista: ele chora em público, descontrola-se verbalmente, seu envolvimento é pessoal, sua identificação com a fragilidade das vítimas e com a “verdade” da situação se impõe a todo o resto. É a coragem da verdade feminina contra, neste caso, a covardia masculina.